A Cinemateca Brasileira, instituição que tem o
dever de preservar e difundir o acervo audiovisual do Brasil, sofreu muito em
2020. O que começou com atrasos de pagamentos por parte do governo federal se
transformou em arma na guerra cultural em curso, acentuada pela troca constante
de secretários especiais da Cultura e por um longo período de indefinição por
parte do Ministério do Turismo, que ainda não cumpriu a promessa – de agosto –
de lançar um novo edital de gestão para a entidade.
Os sinais da crise já estavam presentes em maio,
quando o presidente Bolsonaro demitiu Regina Duarte da Secretaria Especial e
anunciou, ao lado da atriz, que ela iria passar a “fazer Cinemateca”.
O cargo anunciado não existia, pois quem administra a instituição é uma
Organização Social definida em edital. No caso, a Associação Roquette Pinto
(Acerp), que já na época reclamava dos atrasos nos repasses do governo federal,
previstos em orçamento.
O que aconteceu foi que o contrato da Cinemateca
(assinado pelo então ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão, durante o governo de
Michel Temer) era vinculado a outro contrato que a Acerp mantinha com o
governo, no Ministério da Educação, para a gestão da TV Escola. O então
ministro Abraham Weintraub decidiu unilateralmente não renovar este vínculo,
que se encerrava em 2019, e assim o acordo com a Cinemateca ficou num limbo.
A Acerp fez seus esforços para manter a
instituição funcionando até agosto, quando, acompanhado de agentes da Polícia
Federal, um membro da Secretaria Especial da Cultura foi até a instituição
“pegar as chaves”. Nesse dia o Ministério do Turismo, ao qual a
Secretaria está vinculada, prometeu que em poucas semanas um novo contrato de
gestão seria lançado, o que ainda não ocorreu.
A questão da Cinemateca envolve diversos fatores
sensíveis, como a formação específica de seus funcionários (muitos há décadas
na casa; todos foram demitidos nesse episódio de agosto), termos e acordos
antigos assinados entre esferas diferentes de governo (municipal e federal,
especialmente), e a necessidade de segurança especializada no local, para
evitar acidentes, como um incêndio em 2016 (quando a instituição passava por
outra crise) que levou mais de mil rolos de filmes.
O Ministério Público Federal ajuizou uma ação
civil pública cobrando da Justiça um posicionamento no sentido de dar urgência
à questão dentro do governo federal. Uma liminar decidiu por não dar esse
encaminhamento, mas a ação ainda corre.
No dia 17 de dezembro, uma carta assinada pelo
movimento S.O.S. Cinemateca, apoiada por mais de cem produtores audiovisuais,
foi entregue à Secretaria do Audiovisual. “Isso porque apesar das
promessas do Secretário do Audiovisual, Bruno Côrtes, de que a Sociedade Amigos
da Cinemateca seria contratada para executar um plano de trabalho emergencial
de gestão do acervo, transcorridos 4 meses desde a entrega das chaves, a
Cinemateca continua abandonada”, diz um comunicado à imprensa. “A
recente exoneração de mais um Ministro do Turismo e o infarto do Secretário da
Cultura, Mário Frias, pressagiam mais imobilismo.”
Veja aqui uma linha do tempo da Cinemateca
Brasileira em 2020:
20 de maio
Demissão de Regina Duarte e seu anúncio para a
Cinemateca pega todo mundo de surpresa: instituição já estava mergulhada na
crise, com risco de ter energia elétrica cortada por falta de pagamentos das
contas de luz.
4 de junho
Manifestação em frente ao prédio, na Vila
Mariana, pedia resolução do impasse na instituição. Em ofício enviado ao
Governo Federal, a Acerp pedia esclarecimentos sobre questões ainda
indefinidas, como os repasses atrasados. A sensação na Acerp, segundo fontes
ouvidas pelo Estadão na época, é de que a Cinemateca chegou a esta situação de
agora porque a Secretaria de Cultura está à deriva.
18 de junho
Uma intervenção do vereador de São Paulo
Gilberto Natalini (PV) apontou para a Enel (antiga Eletropaulo) sobre a
importância da manutenção da energia elétrica na instituição. “Recomendo
que a Cinemateca enquanto inadimplente não seja tratada como uma entidade ou
empresa qualquer, as consequências culturais de um apagão energético seriam
graves”, dizia o ofício do vereador. A dívida da conta de luz se
aproximava dos R$ 500 mil.
15 de julho
O Ministério Público Federal ajuizava uma ação
civil pública contra a União pedindo a renovação do contrato de gestão da
Cinemateca Brasileira com a Associação Roquette Pinto, e o repasse imediato de
R$ 12 milhões, recursos já previstos e alocados no orçamento.
3 de agosto
A Justiça Federal nega em caráter liminar o
pedido do MPF em razão da “separação entre poderes”, bem como da
ausência da “urgência na decisão”, conforme a Procuradoria apontava.
7 de agosto
Representante do governo federal, acompanhado de
agentes da Polícia Federal, chega à Cinemateca para “pegar as
chaves”, um ato simbólico de transferência de responsabilidades.
O presidente da Acerp, Francisco Câmpera, disse:
‘Foi uma brutalidade eles virem para a Cinemateca com a Polícia Federal’
O Ministério do Turismo, com extratos de
dispensa de licitação publicados no Diário Oficial, destina verbas emergenciais
à Cinemateca. Um deles de cerca de R$ 1 milhão para a Eletropaulo, por meio da
concessionária ENEL Distribuidora São Paulo, para fornecimento de energia
elétrica.
13 de agosto
Todos os funcionários da Cinemateca, especialistas
que trabalhavam na casa há anos, e em alguns casos, décadas, são demitidos.
23 de novembro
Um decreto (10.548/2020) define que a Cinemateca
será gerida pela Secretaria Nacional do Audiovisual, que pertence à Secretaria
Especial da Cultura, ligada ao Ministério do Turismo, até 5 de outubro de 2021.
Cargos em comissão do Ministério foram transferidos à instituição, mas ainda
não preenchidos.