O Brasil vai terminar o ano de 2020 com 77 homens
em oito forças de paz das Nações Unidas. É o menor número de militares em
missões de paz desde que 51 homens da Polícia do Exército chegaram ao Timor
Leste em 1999. A participação brasileira caiu 72% com a retirada de 200 homens
que serviam na fragata Independência na força de paz marítima do Líbano, a
Unifil, ocorrida em 2 de dezembro.
O Ministério da Defesa e a gestão do governo de
Jair Bolsonaro negam que a redução seja uma mudança de política do País, associada
à gestão do atual chanceler Ernesto Araújo e alegam que a decisão de deixar a
Unifil foi tomada em 2019, por motivos operacionais, logísticos e estratégicos,
relativos ao Atlântico Sul. A atual gestão também não estabeleceu planos para
participar de nenhuma outra força de paz. A Defesa ainda afirma que o País
mantém seu compromisso com o sistema de paz da ONU.
A falta da participação do País com contingentes
contrasta com a política de dois vizinhos: o Uruguai e a Argentina. Esta última
mantém tropa na força de paz no Chipre, ao lado do Reino Unido e da Eslováquia.
É em Chipre que o Brasil mantém seu último homem que faz parte de um
contingente – na ilha do Mediterrâneo, um capitão do Exército atua agregado à
tropa argentina na força de paz da ilha dividida entre a comunidade grega e a
turca.
O Brasil mantém ali também um observador
militar. O major Fernando Ferreira Manhães esteve lá em 2018. O brasileiro fez
parte do Estado-Maior da missão. “O nível de tensão ali é muito baixo. A
gente sente uma segurança muito grande no país. Eu costumava brincar que tinha
uma sensação de insegurança maior no Rio do que lá”, disse.
O major explica que registrava apenas
provocações entre as duas forças armadas. A maioria dos incidentes ali era
causado por civis que entravam na zona neutra. “A missão está há quase 50
anos e a paz não chegou ainda.”
Outro vizinho do Brasil, o Uruguai, mantém um
batalhão com 906 homens na Monusco, a força de paz que atua na República
Democrática do Congo (RDC). Comandada por um general brasileiro – Ricardo
Augusto Ferreira Costa Neves -, a Monusco abriga hoje 21 brasileiros, a maioria
é formada por um grupo de instrutores de guerra na selva que estão treinando o
exército da RDC. Trata-se de uma das forças com maior presença de brasileiros
no exterior. Já o Uruguai mantém ainda outros 210 militares na Undof, a força
de paz mantida pela ONU nas colinas de Golã, entre Síria e Israel.
O Brasil tem 22 militares na Unifil, no Líbano,
mas esse número deve diminuir quando o País deixar o comando da força, que deve
ser assumido pela Alemanha em janeiro. Abaixo da Unifil, a força de paz que
conta com mais brasileiros, segundo dados da ONU, é a mantida pela organização
no Sudão do Sul, a Unmiss. Tanto lá quanto no Líbano, os brasileiros estão lá
desde 2011. Atualmente, 13 militares e policiais brasileiros estão no país
africano – havia 24 no começo do ano.
O coronel Taylor de Carvalho Neto era um dos
14,9 mil militares de 63 países que estavam na Unmiss em janeiro. Ali
presenciou três combates entre integrantes das forças do governo e grupos
armados que atuam na região. “O país possui inúmeras etnias com costumes e
tendências belicosas, cujas ações, muitas vezes, colocam o acordo de paz em
risco. Por este motivo, é comum escutarmos, durante as avaliações da
conjuntura, a seguinte frase: ‘a situação é calma, porém imprevisível’.”
Para Taylor, apesar de o país não ter
contingente na Unmiss, os oficiais enviados à operação passaram “por um
rigoroso processo de seleção, cujo reflexo está na qualidade do trabalho
realizado”. Para ele, “esses oficiais estabelecem contato com pessoas
dos mais diferentes países e passam uma imagem muito positiva de nosso Exército
e de nosso País.” Taylor conclui que essa é “uma forma de projeção do
poder: mostrar ao mundo que o Brasil possui um grande Exército, com
profissionais competentes e dedicados e que são a exata expressão do povo
brasileiro”.
Ainda na África, o Brasil mantém nove militares
na Minurso, a força de paz do Saara Ocidental, e outros sete na Minurca, a força
que atua na República Centro-Africana. O coronel Rodrigo Santos Boueri, que
esteve na força, descreve a situação enfrentada pelos brasileiros no país.
“A situação é de incerteza Os grupos armados agem frequentemente para
conquistarem novas áreas, especialmente de exploração mineral ou de pastagens.
Entre outubro de 2018 e outubro de 2019, houve vários combates entre os grupos
armados e destes contra tropas da ONU, incluindo emboscadas de comboios com
mortes de capacetes azuis.”
Para Boueri, mesmo com os riscos das missões,
trabalhar em operações de paz “é fundamental para a projeção de
poder”. “Não participar desse ambiente é abrir mão da
responsabilidade de cada país de intervir em nome da paz internacional, o que
coloca um país na condição de ator medíocre no concerto das nações.”
Segundo o coronel, a missão em que ele serviu é de “suma importância,
pois, graças à Minusca, há ajuda humanitária chegando a milhares de pessoas e
redução da violência em algumas áreas antes dominadas por grupos armados”.
Consenso
As declarações dos militares, de diplomatas e do
Ministério da Defesa mostram a existência de um consenso em torno da
importância para o País e para suas Forças Armadas na participação nessas
missões. Para o professor Guilherme Dias, da Escola de Comando e Estado-Maior
do Exército (Eceme), o fato de o Brasil estar no quarto force commander na RDC
(o comandante da Minusco, o general Costa Neves) mostra que o Brasil tem
“algo a oferecer em termos de missão de paz, que respaldam e dão legitimidade”.
“Quando olhamos a participação do Brasil no Haiti, a repercussão e os
ganhos políticos em termos de projeção são flagrante.”
De acordo com ele, 23 dos 140 alunos da Eceme
estudam atualmente missões de paz.
Para o coronel Carlos Eduardo de Franciscis
Ramos, o aprendizado do Exército em missões no exterior ajudou a consolidar o
interesse pelo estudo dessas operações no País. “A perspectiva de um
oficial aluno com experiência de observador militar ou como tropa no Haiti é
muito rica.”
O Haiti foi a última operação com tropa do
Exército no exterior. Ao todo, mais de 37,3 mil militares brasileiros estiveram
na ilha caribenha, onde trabalharam estabilizando o país e mantendo a ordem.
“Há semelhanças e diferenças entre GLO (Garantia da Lei e Ordem) no Brasil
e no Haiti e na África. Aqui estamos tratando de crime, atividade criminosa e
lá estamos tratando de gangues opressoras”, afirmou o coronel.
Seu colega de Eceme, o coronel Flávio Roberto
Bezerra Morgado destacou a situação jurídica como a principal diferença das
ações de GLO e as missões de paz da ONU. “O que muda é o seu amparo
jurídico, a liberdade de ação para fazer determinadas coisas. E aí que eu acho
que é a grande virtude das tropas brasileiras: é a inteligência cultural. GLO é
diferente da missão de paz. E o soldado brasileiro tem capacidade para entender
isso. Ele entende a diferença do povo haitiano e do brasileiro, as culturas
diferentes”, afirmou.
Para ele, outra herança das missões de paz são o
aprendizado da tropa. “Como organizar, equipar e como combater. Se pegar a
estrutura inicial de nossas forças no Haiti era uma. E, no fim, era totalmente
diferente por causa da evolução doutrinária que foi acontecendo. São as lições
aprendidas.”