De algum lugar da mente, surgem nossas lembranças.
Daquela época em que você jogava futebol com os amigos no campinho do bairro.
De quando você se apaixonou pela primeira vez. De um outro momento político do
País. E essas recordações, muitas vezes, são revividas em forma de canção.
Jônatas Manzolli, especialista em Cognição
Sonora, acredita que a música e outras manifestações culturais possam ser um
caminho de estabilidade. “As memórias induzidas pela música podem nos
curar. Se temos um ‘minúsculo inimigo’, quase invisível, e um caldeirão de
notícias falsas e muito sofrimento, a escuta musical pode ser uma forma de
desenvolver a nossa musculatura emocional”, enfatiza ele, também
pesquisador musical com PhD na University of Nottingham, no Reino Unido.
Para Manzolli, o isolamento social em
decorrência da pandemia de covid-19 nos colocou em situação de suspensão dos
sentidos. “Aqueles que não são negacionistas se colocaram num exílio
voluntário de afetos, amores e abraços distantes. A pressão seletiva de termos
que nos reconfiguram em espaços mínimos com informação redundante, todo dia,
nos induz a releituras de fatos e memórias. Precisamos ancorar nossas emoções
para nos fortalecer e preservar a nossa identidade psicológica”, avalia.
Segundo um levantamento realizado pelo Spotify,
em abril de 2020, a busca por canções nostálgicas cresceu 54% em meio à
pandemia do novo coronavírus. A plataforma de streaming também detectou que os
usuários começaram a criar mais playlists com temática retrô. Sweet Child
O’Mine, de Guns N’Roses, Se?, de Djavan, e Tempo Perdido, do Legião Urbana,
foram as mais tocadas.
“Cantar era buscar o caminho que vai dar no
sol. Tenho comigo as lembranças do que eu era. Para cantar nada era longe, tudo
tão bom”. Assim dizia Milton Nascimento em Bailes da Vida, de 1981. Porém,
o músico jamais imaginaria que, exatamente 40 anos depois, a humanidade, diante
da pandemia do novo coronavírus, buscaria refúgio em sua obra durante o
isolamento social.
Erika Godoy tinha 7 anos de idade quando ouviu
Canção da América pela primeira vez. Hoje, aos 26, consegue recordar detalhes
do que viveu na época. “Eu estudava em uma escola pública aqui do Rio de
Janeiro, onde fui muito feliz e tenho amigos dessa época até hoje. Uma
professora trabalhou com a gente a Canção da América em uma aula. Me emocionava
pela letra e, ao ouvi-la agora, consigo lembrar com riqueza de detalhes daquele
momento. Eu era uma criança formando um ciclo de amizades”, afirma a
jovem.
No Twitter, Milton Nascimento pediu para que os
seguidores relatassem lembranças que tinham, como pano de fundo, suas canções.
“Teve algum momento especial da sua vida que tenha tocado uma música
minha? Me conta essa história!”, escreveu na rede social. A publicação
teve milhares de curtidas e comentários.
O cantor, que segue em isolamento social ao lado
do filho em Juiz de Fora, Minas Gerais, se surpreendeu com a repercussão.
“Quando a gente coloca uma música no mundo, é muito difícil imaginar os
caminhos que ela vai seguir. E, quando li as histórias que as pessoas contaram
nas minhas redes sobre a relação delas com algumas dessas músicas, foi uma
surpresa muito grande. Se pudesse, gostaria de ouvir pessoalmente cada uma
dessas histórias e, mais ainda, poder abraçar todos esses fãs que me escreveram
com tanto carinho”, disse o cantor, em entrevista ao Estadão.
Além de Milton, Erika Godoy tem escutado muita
MPB em tempos de pandemia. “Caetano, Maria Bethânia, Chico Buarque e Elis,
que é uma herança de minha mãe, que é fã e me fez amar. Sempre coloco uma
playlist ‘MPB anos 70’ ou ‘Tropicália’ no streaming. Tem me ajudado bastante,
principalmente porque são composições mais profundas, então me apego àqueles
dizeres que me fazem refletir”, afirma.
Mais exemplos de que as canções podem ser
terapêuticas estão em duas áreas que estudam a interação delas com o corpo e o
cérebro: a Musicoterapia e a Neurociência da Música. A canção não se manifesta
somente por meio de melodias. Há uma gama complexa de elementos: a letra, a
interação entre as notas, as durações que produzem o ritmo, inclusive a
ausência de som, ou seja, o silêncio. “É um fenômeno antropológico,
sociológico e cultural. Portanto, sem dúvida a música ‘mexe’ com nossas
emoções, porque é plástica e se propaga pelo corpo e pela mente”, afirma
Manzolli.
Para Leonardo Motta, de 46 anos, a música
Coração de Estudante desperta um outro tipo de reminiscência. Aos 10 anos, ele
a ouviu, de forma sistemática, na época da morte de Tancredo Neves (que foi
eleito indiretamente, mas não assumiu a presidência da República), em 21 de
abril de 1985, momento da transição da ditadura militar para a democracia no
Brasil. “A população estava com muita esperança de dias melhores. Foi uma
comoção! E Coração de Estudante foi como um hino do momento”, diz.
“Minha família comentava muito sobre tudo aquilo, éramos de classe média
baixa e tudo girava na expectativa de dias melhores. Me traz nostalgia.”
Em Coração de Estudante, Milton Nascimento se
refere indiretamente ao estudante secundarista Edson Luís de Lima, assassinado
por policiais militares durante um confronto no Rio de Janeiro, em 1968. A
história não é explícita na letra, mas as entrelinhas dão o tom: “Já
podaram seus momentos, desviaram seu destino, seu sorriso de menino quantas
vezes se escondeu. Mas renova-se a esperança, nova aurora a cada dia”.
O programa Reserva Eldorado, que vai ao ar de
segunda à sexta, às 14h, na Rádio Eldorado, é composto por músicas que fizeram
sucesso até os anos 1990 e inspiram nostalgia. A produtora Juliana Mezzaroba
tem o cuidado de fazer uma ordem musical que lembre uma determinada época.
“Quando escolho os anos 1980, tento pensar em new wave. Ou o que faço
muito – e aí já é uma memória afetiva – são sequências que remetem aos filmes
da Sessão da Tarde. Na semana passada, por exemplo, coloquei na rádio um Don’t
You (Forget About Me), do Simple Minds, do filme Clube dos Cinco. Quando
programo as músicas, é gostoso lembrar dessa época e as pessoas se
identificam”, afirma.
Do outro lado do oceano, mais precisamente em
Paris, na França, Joana Carneiro Moreira se refugia na melodia. “O meu pai
já faleceu. Travessia é a canção que me faz lembrar dele. Em tempos difíceis,
ouço Tudo o que Você Podia Ser. Quando a saudade bate, prefiro Mistérios. Tenho
muito apego a toda obra do Milton Nascimento”, conta a carioca.
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