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Paranapiacaba e as lendas em meio à neblina

Rosana Ibanez

A cerca de 50 quilômetros da capital paulista e com pouco mais de mil habitantes, Paranapiacaba foi tombada há décadas pelo Iphan como patrimônio material do Brasil. Além do seu valor histórico, arquitetônico e artístico, o distrito de Santo André conhecido como “a Silent Hill brasileira” atrai turistas de todo o País pela sua aura mística, reforçada por encontros de bruxas, magos e lendas há mais de um século. Neste ano, a vila na Grande São Paulo também serviu de locação e inspiração para Vale dos Esquecidos, primeira série de terror produzida no Brasil pelo streaming da HBO.

A história de Paranapiacaba começa em 1860, quando passou a ser povoada por imigrantes ingleses que chegaram para trabalhar na São Paulo Railway Company (SPR) e logo depois foram acompanhados por espanhóis, libaneses, italianos e portugueses.

O estilo de vida na vila, que conserva até hoje boa parte da estrutura construída naquela época e nas décadas seguintes, girava em torno da atividade ferroviária, iniciada de forma pioneira para transportar o café do interior do Estado para o Porto de Santos.

No início do século 20, a profusão de imigrantes em Paranapiacaba levou à vila ares cosmopolitas, o que atraiu visitantes das cidades próximas e a tornou ponto de referência da época. Hoje, é possível ter uma ideia de como os moradores dali viviam em 1930 com a exposição Casa da Família Ferroviária, que recria em uma das residências oficiais dos trabalhadores cômodos, móveis e fotografias de época. “As famílias eram numeradas de acordo com a carteirinha do funcionário”, explica Eric Lamarca, diretor de gestão de Paranapiacaba na Prefeitura de Santo André, apontando para a imagem de uma mulher e duas crianças em frente a uma casa marcada com 451. Uma foto ao lado mostra uma banda de jazz que tocava ao vivo durante as exibições nos dois cinemas da vila. “Se tirar a Mata Atlântica do fundo, você está no Mississippi.”

LENDAS E FATOS

Lado a lado com a prosperidade da vila, Paranapiacaba tornou-se também palco de algumas tragédias, mortes de ferroviários, incêndios, um surto de gripe espanhola e amores proibidos que embasaram muitas das lendas ouvidas e contadas ali até hoje. O cemitério aos pés da Paróquia Senhor Bom Jesus, por exemplo, existe desde o século 19 e é um dos cenários onde elas teriam acontecido.

“Algumas coisas realmente aconteceram, mas de outra forma. Com a história oral, isso foi se modificando ao longo do tempo”, explica o autor Alexandre Lince. Ele lançou em 2018 três versões diferentes do livro Lendas de Paranapiacaba, em prosa, ilustração e quadrinhos.

Na obra, ele relata os principais contos orais entrelaçados de forma linear como se um dependesse do outro. “A primeira história é de 1888, quando dizem que Jack, O Estripador, veio foragido para cá com uma leva de imigrantes ingleses e se tornou o primeiro médico da vila”, afirma.

Mas o serial killer que amedrontou Londres no final do século 19 está longe de ser a figura principal nas lendas de Paranapiacaba Uma das histórias mais contadas sobre a vila é a do filho de um engenheiro que teria se apaixonado pela filha de um ferroviário.

Juntos, eles viveram escondidos um amor proibido entre duas classes sociais distintas. No dia em que iriam oficializar a união, entretanto, o pai do rapaz descobriu a relação e prendeu o filho em uma adega no subsolo da sua casa. Abandonada e desolada, a noiva arrastou seu véu até a ponte de uma gruta e se jogou dali.

Diz o ditado que quem conta um conto aumenta um ponto e os detalhes variam a depender de quem os narra (uns dizem que ela tropeçou e outros que foi jogada), mas a trama principal é que o luto da mulher teria se transformado na neblina espessa que cobre a vila diariamente. Segundo a lenda, a névoa seria o espírito da noiva cobrindo as ruas e telhados em busca do seu amado.

“Na verdade, foi o rapaz que morreu e se matou enforcado. Ela, inclusive, teve filhos e morreu velhinha”, conta Lince, que entrevistou vários moradores para o seu livro e planeja lançar nos próximos anos uma versão com “os fatos por trás das lendas”. “Essa história foi dita dessa forma para impedir relações entre pessoas de classes diferentes na vila”, afirma.

Há, claro, explicações científicas que justificam a neblina em uma vila no meio de uma serra da Mata Atlântica, mas isso não faz com que o fenômeno climático seja menos intrigante. Tanto que a vila ficou conhecida como a “Silent Hill brasileira”, em referência à cidade fictícia dos filmes, contos e jogos de terror que é constantemente coberta por… neblina. Por tudo isso, Paranapiacaba virou o cenário de Vale dos Esquecidos, da HBO.

Protagonizada por Caroline Abras e Daniel Rocha, a produção mostra em dez episódios a jornada de um grupo que se perde durante uma trilha e, fugindo dos riscos encontrados na floresta, busca abrigo em uma vila escondida sob uma névoa constante que não está nos mapas (Paranapiacaba).

Nascido e criado ali, Jorge Mariano foi um dos moradores que participaram da produção. Guia turístico da agência Paranapiacaba Olho Vivo, ele é filho de um dos ferroviários que trabalhavam na vila. Mariano atua como monitor ambiental e cultural, promovendo passeios ecológicos, pedagógicos e “acrescentando algumas lendas urbanas” aos fatos, com encenações dramáticas, por exemplo, da história do “Véu da Noiva”.

“As lendas foram contadas por várias gerações e, com a neblina, aqui sempre tem esse ar de mistério, né? Os turistas, principalmente as crianças, gostam bastante. Sempre tentamos passar um pouco de tudo para criar um passeio bem lúdico”, conta “Hoje, isso é um atrativo a mais para a vila, além das partes histórica, arquitetônica e ambiental.”

BRUXAS E MAGOS

Não bastassem as lendas, histórias e relíquias, Paranapiacaba também abriga a sede da Associação Brasileira de Bruxaria (ABB) e, nos últimos 17 anos, é palco para a Convenção de Bruxas e Magos, principal evento do País nesse segmento. Segundo a prefeitura de Santo André, o encontro em maio passado reuniu mais de 30 mil pessoas.

“A vila é um dos pontos mais fortes de energia da região do centro de São Paulo. É um lugar onde toda a Mata Atlântica pulsa para trazer o maior equilíbrio e felicidade. As pessoas não sabem aproveitar isso, mas Paranapiacaba é extremamente mágica”, explica Tânia Gorin, presidente da ABB.

Ao contrário do que paira sobre o imaginário coletivo, as bruxas e magos de Paranapiacaba não têm vínculo com religiões, seitas ou qualquer entidade satânica. “As pessoas ainda têm muito medo, mas a bruxa busca na natureza uma melhor qualidade de vida, por meio de cristais e pedras, da terra, do fogo, da água e do ar, com um maior equilíbrio no caminho.”

O 31 de outubro que conhecemos como Halloween é, na verdade, o “réveillon das bruxas” e traz consigo a oportunidade de fazer três pedidos ao universo. A data será comemorada em Paranapiacaba com um festival entre este sábado (anteontem) e amanhã, dia 1º. A programação inclui oficinas de “gastronomia mágica”, ecologia, shows, rituais e palestras. “Queremos mostrar para as pessoas que é uma celebração, um ano-novo mesmo”, destaca Tânia.

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