O dia de Adelmira Ventura Adão começa bem cedo, antes mesmo de o sol raiar. Às 5h30, quando o neto David se prepara para sair de casa, rumo ao trabalho de vigilante, ela já está de volta do seu treino que corresponde a uma corrida de rua que pode variar de cinco a 12 quilômetros, três vezes por semana. Revigorada pela atividade física, ela já emenda nas tarefas domésticas logo após o café da manhã: limpar a casa, fazer comida, capinar o quintal, lavar e passar roupa são afazeres que compõem parte de sua rotina diária. Nada mal para uma senhora de 96 anos que superou o isolamento da pandemia do covid-19 e continua dando suas passadas largas pelas ruas para viver com alegria após a morte do marido. Mas nem só de atletismo e trabalho de casa vive a vovó corredora. Flamenguista de carteirinha, a capixaba que mora na cidade de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, é fã do atacante Richarlison e também adora escutar as músicas de Roberto Carlos. “Eu me emociono com ele. Tem uma voz linda.”
A vovó corredora já enfrentou a resistência de alguns médicos quanto à prática do esporte. Mais do que uma atividade física, a corrida é como uma espécie de combustível para ela ter disposição de fazer as coisas. “Correr é a vida dela. Se tirar isso, nem sei o que acontece. Outra coisa: nem pense em convidá-la e não dar um troféu, uma camisa, ou uma medalha. Ela fica brava. Corredor de rua gosta de troféu e a minha avó não é diferente”, comentou o neto de 42 anos, que, por força da disposição de dona Adelmira, acaba também entrando em forma e atuando como uma espécie de enfermeiro e preparador físico de plantão.
“Fico sempre observando e não deixo ela forçar nada. Tiro a pressão, entrego água durante a prova, ajudo na orientação da passada correta, corrijo quando a respiração está forçada e fazemos os percursos juntos. Não tenho formação técnica, mas estou sempre ali”, afirmou.
Mas não é só a idade que a torna fora dos padrões para uma pessoa que gosta de correr. A dieta para se manter forte e disposta também é bastante peculiar. “Eu como abóbora, jiló, angu, carne, arroz, feijão e um torresminho quando tem. Fui criada na roça e aprendi a comer de tudo. Não sou de comer muito, mas me alimento bem”, comentou dona Adelmira.
Atleta mais idosa do Espírito Santo, Adelmira tem no currículo várias provas em seu estado natal e também no Rio de Janeiro. No final do ano passado, por exemplo, ela conseguiu unir o útil ao agradável e participou da Fla RUN, corrida oficial do Flamengo. Nessa aventura com o neto, a vovó corredora teve a oportunidade de realizar dois desejos. “No percurso corremos pelo estádio e pude conhecer o Maracanã. O outro sonho foi visitar a Gávea, já que lá era o ponto de retirada dos kits da corrida.”
Atleta ativa desde 2009, Adelmira precisou interromper o ritmo das provas por causa da pandemia da covid-19. “Nesses dois anos, a sequela que ficou da pandemia foi uma dorzinha na coluna e no joelho esquerdo. Mas fomos na nossa médica e ela liberou a corrida. Antes da parada por causa do isolamento, ela treinava direto e esses problemas não apareciam”, afirmou David.
Com mais de cinquenta peças, contabilizando medalhas e troféus penduradas na parede de um dos cômodos da casa, vovó Adelmira se prepara para voltar a fazer o seu melhor tempo. De acordo com o neto, ela já completou uma prova de dez quilômetros em 55 minutos. Recentemente, o desempenho baixou. Mas isso não é motivo de preocupação para David. “Com a pandemia ela engordou um pouquinho e passou a ter dores na coluna. Mas com a volta das atividades físicas, isso muda. Minha avó é competitiva. Cada troféu que ela ganha é conquistado na raça, na força do ódio”, brincou o neto.
Em janeiro, ao participar da 5ª Corrida das Paletitas, em Piúma, município do Espírito Santo, a veterana voltou a mostrar que está longe de largar a sua paixão. Completou os oito quilômetros em uma hora e 20 minutos e foi muito festejada pelos participantes do evento. “Ela é reconhecida por muitas pessoas por ser a atleta mais idosa do nosso estado. Muita gente a acompanha pelo Instagram. Faz muitos amigos nessas corridas e costuma receber cumprimentos pela rede social de pessoas que moram em outros países como Estados Unidos, Inglaterra e Portugal.”
A médica da vovó corredora, Maria Eugênia Azevedo, geriatra que a acompanha desde 2011, é só elogios para sua paciente. “Primeiro que sua genética é fantástica. E segundo que a Adelmira possui uma vontade incrível de correr. Ama estar em atividade e compete dentro das suas possibilidades.”
Com 1,65 m e 57 quilos, a corredora apresenta artrose na coluna lombar e também no joelho esquerdo. No entanto, a médica garante que esses problemas não a impedem de fazer o que mais gosta. “Se ela ficasse parada, iria sentir isso do mesmo jeito. Temos que saber que estamos lidando com uma pessoa de 96 anos. Mas a parte física dela é ótima. Mesmo nessa idade toma apenas remédio para controlar a pressão. Participar, estar no meio das pessoas, faz muito bem para o seu o lado psicológico”, disse a médica.
MORTE DO MARIDO
Natural de Monte Alegre, distrito de Cachoeiro do Itapemirim, Adelmira nasceu em uma comunidade quilombola. Mais velha de uma família com nove irmãos, trabalhou na lavoura desde cedo e ajudava nas tarefas de casa. Com 15 anos, passou a trabalhar como empregada doméstica, função que seguiu até se aposentar.
Mãe de Rita Adão, filha do seu primeiro relacionamento, ela tem também três netos. Casada com João Batista, com quem viveu por 20 anos, a vovó corredora passou a desenvolver seu lado atleta após a morte do segundo marido. Aos 74 anos, começou a frequentar um grupo de convivência. Ali passou a praticar exercícios físicos para a terceira idade e, meio que sem querer, estreou logo em uma corrida de dez quilômetros em 2009.
“Fomos lá, deu a largada, mas era para caminhar três quilômetros O pessoal foi correndo e segui atrás. A turma gritava para esperar, mas eu segui e fiz a corrida toda. Acharam que eu devia estar maluca, mas fui completando o percurso e gostei muito. Não parei mais.”
O entusiasmo e a aptidão para as corridas foram tão grandes que David conta que eles chegaram a participar de duas provas de rua em um mesmo dia. “Rapaz, se eu conto, ninguém acredita. Isso aconteceu em Muqui. (cidade que fica a 35 quilômetros de Cachoeiro do Itapemirim). Pela manhã, corremos 5 km e voltamos para Cachoeiro para fazer mais 10 km em outra corrida de rua à noite. Eu e ela juntos.”
FÃ DE RICHARLISON E ROBERTO CARLOS
Ligada sempre em acompanhar futebol quando não está envolvida com as tarefas de casa ou com treinos e corridas, Adelmira tem um ídolo em especial que gosta muito de acompanhar: o atacante Richarlison, natural de Nova Venécia. Além de gostar do seu estilo de jogo, um outro ponto a faz prestar atenção no atacante: o fato de ser capixaba.
“O capixaba torce muito pelo sucesso de seu conterrâneo e tenho muito orgulho do Richarlison. E ele joga muito bem também. Além disso, é uma grande figura e está sempre preocupado em ajudar as pessoas que precisam. Isso dá orgulho para nós. Gosto muito de ver um capixaba vestindo a camisa da seleção brasileira”, afirmou a vovó.
Antenada com as redes sociais, ela tem um perfil próprio sob o nome de “voóvocorredora”. Ali registra momentos com a família e também fotos de suas participações nas corridas. E Richarlison não poderia ficar de fora. Ele aparece em uma foto com a camisa da seleção em seu perfil. Ali, ela faz questão de demonstrar a admiração pelo atleta. “Tá achando que só a vovó aqui é boa nas pernas?”, diz parte do texto. Em seguida ela completa a homenagem com “Parabéns Richarlison! Orgulho para o Espírito Santo. Orgulho para o Brasil!”.
Roberto Carlos, que nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, também tem um espaço especial reservado na sua galeria de ídolos. Até mesmo entre as músicas preferidas do cantor, a velocidade, de certa forma, se faz presente. “Ela gosta das antigas como Lady Laura e Amada Amante. Mas a sua preferida é ‘Por isso corro demais'”, contou o neto David. “Ah, seu eu ficar parada vou fazer o que? Deixa eu correr, isso é a minha vida”, finalizou.
Vovó movida por abóbora, jiló e angu usa corrida de rua para driblar depressão aos 96 anos
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