O inimigo mora em casa: como identificar uma relação tóxica em família

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Foi com um misto de emoções que a corretora de imóveis Marcela Debiagi, de 36 anos, assistiu à entrevista da atriz e cantora Larissa Manoela, de 22, no Fantástico, na noite de 13 de agosto de 2023. Por um lado, ela sentiu tristeza, ao testemunhar mais um caso de relação turbulenta em família. Por outro, respirou aliviada, por interpretar que a artista percebeu os prejuízos daquela dinâmica.

Marcela é criadora do grupo Famílias Tóxicas, do Facebook. Fundado em março de 2019, o grupo já totaliza 36,6 mil membros. Desses, 90% são filhos de pais tóxicos – ou “narcisistas”, como eles preferem chamá-los. Os 10% restantes abrangem outras formas de toxicidade familiar, como irmãos (quando um tenta oprimir o outro) e cônjuges (quando, na maioria das vezes, maridos tentam subjugar as mulheres).

“A relação familiar tóxica ainda é tabu em nossa sociedade”, afirma Marcela, que faz terapia desde a adolescência e está concluindo o curso de psicanalista. “Nas ruas, se você vê alguém maltratando um gato ou cachorro, sai logo em defesa do animal. Mas, se vê uma mãe batendo numa criança, acha que é normal e está tudo bem. Ninguém tolera agressão contra mulher, idoso e animal. A única agressão tolerada socialmente é contra a criança O pior de tudo é que a criança agredida hoje tende a se transformar no adulto agressor de amanhã”.

Conflito é diferente de relação tóxica

A psicanalista Maria Homem de Melo, pesquisadora do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos (FFLCH/USP), pondera que conflito familiar é uma coisa e relação tóxica, outra.

“Conflitos nascem de diferenças e somos todos diferentes uns dos outros. Fazem parte de qualquer relação e chegam a ser fundamentais para o processo de autoconhecimento. Uma relação familiar começa a se tornar tóxica quando um oprime, subjuga, domina e objetifica o outro. Nascemos na condição de objetos, porque é o outro que cuida de nós e nos transmite os valores da civilização, mas nos tornamos sujeitos. Tóxico é o indivíduo que quer nos manter na condição de objeto por mais tempo que o necessário”, observa a psicanalista.

Sinais de alerta

Por definição, tóxico é tudo o que contém veneno e produz efeito nocivo no organismo. Por associação, tóxica é toda relação, familiar ou não, que envolve manipulação emocional e causa prejuízo à saúde física e mental de suas vítimas. Entre outros estragos, terapeutas familiares e profissionais da área de saúde mental apontam crises de ansiedade, quadros de depressão e até tentativas de suicídio.

A presidente da Associação Brasileira de Terapia Familiar (Abratef), Ana Cristina Fróes, avisa que são incontáveis os sinais de fumaça emitidos por um relacionamento em chamas: falta de diálogo em casa, comunicação verbal agressiva, desvalorização dos sentimentos do outro, desrespeito aos limites individuais e permanente comparação entre os filhos, só para citar alguns. Em geral, relacionamento abusivo é óbvio (acontece há mais tempo e em alta intensidade) enquanto o tóxico é mais sutil (ocorre há menos tempo e em intensidade leve ou moderada).

“Tóxico ou abusivo, os dois requerem cuidado porque envolvem altíssimo nível de estresse, afetam a qualidade de vida da família e podem causar danos emocionais. Muitas vezes, para evitar o pior, as vítimas optam pelo silêncio. Mas, é a pior decisão que poderiam tomar. O silêncio apenas dá sobrevida às relações tóxicas”, alerta a psicóloga.

Transtorno de Personalidade Narcisista

A ideia de criar o grupo Famílias Tóxicas surgiu em 2017 depois que Marcela assistiu a outra matéria do Fantástico, sobre mães narcisistas.

O adjetivo “narcisista” faz referência a Narciso, personagem da mitologia grega que, num rompante de vaidade, morre afogado depois de se apaixonar pela própria imagem refletida na superfície de um lago. Inspirou, além de pintura de Caravaggio e letra de Caetano (“É que Narciso acha feio o que não é espelho”, da música Sampa), um distúrbio psiquiátrico, o Transtorno de Personalidade Narcisista, incluído na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria.

Segundo a “Bíblia da Psiquiatria”, os narcisistas, entre outras características, se julgam superiores aos demais, não sentem empatia por ninguém e exigem dedicação sem limites. Para ser diagnosticado como tal, o paciente precisa apresentar cinco dos nove critérios em pelo menos dois contextos diferentes – casa e trabalho, por exemplo.

“Em algumas famílias, há confusão entre o que os pais desejam para os filhos e o caminho que os filhos desejam seguir. Diferenças existem para serem respeitadas. Quando não há respeito pelo desejo do outro, tem início o relacionamento tóxico”, assinala a psicanalista Haydée Côrtes de Barros S. Piña Rodrigues, diretora do Centro de Estudos Psicanalíticos da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). “Dizem por aí que ‘filho de peixe peixinho é’, não é verdade? Nem sempre. Às vezes, filho de peixe não gosta de rio!”.

Casos famosos

Nos Estados Unidos, a cantora Rihanna, de 35 anos, processou o pai, Ronald, por uso indevido de uma de suas marcas, Fenty, de cosméticos. A relação dos dois, diga-se de passagem, nunca foi das melhores. Rihanna o acusa, entre outras coisas, de ter sido abusivo com sua mãe, Mônica, e de ter vendido fotos dela para a imprensa sem o seu consentimento.

Outro caso que ganhou repercussão internacional foi o da também cantora Britney Spears, de 41 anos. Em novembro de 2021, ela se viu livre da tutela legal do pai, Jamie. Por 13 anos, ele controlou tanto a vida quanto a carreira da filha. Durante o processo, Britney acusou o pai de roubá-la quando deveria administrar suas finanças. Desde então, os dois não se falam mais.

O caso mais recente é o da ex-atriz Jennette McCurdy, de 31 anos Em 2022, ela publicou sua autobiografia, Estou Feliz que Minha Mãe Morreu (“I’m Glad My Mom Died”, no original). Nele, a estrela da série infantil iCarly, do canal Nickelodeon, afirmou ter sido abusada física e emocionalmente pela própria mãe, Debra, que morreu em 2013, vítima de câncer.

Segundo os relatos da autora, sua mãe a obrigou, quando tinha seis anos, a seguir a carreira de atriz e fazia questão de dar banho nela, até os 16, só para “inspecionar” suas partes íntimas Em outros trechos, Jennette relata que a mãe a xingou de “vadia” quando ela foi flagrada por um paparazzi e atribui sua anorexia às restrições alimentares que era obrigada a seguir. “Não era amizade. Era abuso”, descreveu ao jornal The Washington Post.

“Em geral, pais com traços narcisistas não dialogam com os filhos porque se julgam os donos da verdade”, define a psicóloga Letícia Centurion, especialista no atendimento a vítimas de pais abusivos. “Além disso, distorcem os fatos, posam de vítimas e não assumem erros. Muitas vezes, ainda são agressivos. A única saída é romper laços”.

Ressignificar

Feito o diagnóstico, o tratamento de Transtorno de Personalidade Narcisista consiste em psicoterapia e remédio.

Na psicoterapia, o psicólogo tenta dar novo sentido à relação familiar. É a chamada “ressignificação”. “Não escolhemos a família que temos. Mas, também, não precisamos aceitar o cenário destrutivo de uma família tóxica como destino”, afirma a psicóloga Karina Fukumitsu, doutora em Psicologia pela USP e coautora do livro Acolher e Se Afastar: Relações Nutritivas e Tóxicas. “Relações familiares tóxicas podem ser ressignificadas se todos os membros da família estiverem dispostos a desenvolver uma comunicação respeitosa e não violenta”.

Na medicação, o psiquiatra pode prescrever remédios para comorbidades, como ansiedade ou depressão.

“Relações tóxicas podem ter solução, sim. Mas, antes de tudo, é preciso reconhecer que há um problema a ser solucionado”, reitera Marcela Debiagi, do grupo Famílias Tóxicas. “Pais narcisistas dificilmente admitem abusos, reconhecem erros ou se arrependem do que fazem. Pior: culpam as vítimas pelo que aconteceu. Não podemos mais nos calar. Em geral, a sociedade só se comove quando aparece mais um caso de criança morta por maus-tratos no noticiário. Mas, se alguém tivesse feito algo, aquela criança ainda poderia estar viva”.

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