Em outubro de 2024, o Brasil deu um passo histórico no enfrentamento à violência de gênero com a publicação da Lei nº 14.994. Uma legislação que finca raízes em um terreno árido: a luta pelo respeito e pela vida das mulheres. Ao estabelecer o feminicídio como crime autônomo e agravar as penas para crimes de violência contra mulheres, a nova lei não só traduz um anseio social, mas também traz à luz a complexidade desse enfrentamento.
Por anos, as vítimas de violência doméstica clamaram por um sistema penal que reconhecesse o feminicídio não como um agravante, mas como um ato de brutalidade que carrega em seu cerne o menosprezo à condição feminina. Finalmente, a legislação o coloca em pé de igualdade com outros crimes hediondos, com penas que variam entre 20 e 40 anos de reclusão. Não é um pequeno avanço: é um grito jurídico que ecoa em defesa das vítimas, das sobreviventes e de todas as mulheres que caminham pelo Brasil carregando o peso da desigualdade.
Contudo, como todo avanço, a lei nos desafia a uma reflexão crítica. A primeira delas reside no aparente paradoxo de uma resposta exclusivamente punitivista. É certo que agravar penas e ampliar conceitos pode intimidar agressores, mas será que o cárcere por si só é capaz de reverter um cenário enraizado em padrões culturais e históricos? A experiência nos mostra que a prisão, muitas vezes, se limita a ser um remédio amargo, mas paliativo, que não alcança as causas profundas do problema.
Aqui, o direito penal simbólico emerge como uma preocupação legítima. Leis como a nº 14.994 frequentemente se tornam instrumentos de retórica política, criando a sensação de que o problema foi enfrentado, enquanto suas raízes sociais permanecem intactas. O simbolismo do endurecimento penal traz visibilidade, mas carece de eficácia concreta. O que se faz com uma norma que promete mais do que a estrutura do sistema pode cumprir? Há risco de que essa legislação, como outras antes dela, seja celebrada em discursos, mas encontre limitações práticas que diluam seus efeitos na realidade.
Além disso, a nova legislação avança ao ampliar os efeitos das condenações. O condenado por feminicídio, por exemplo, poderá ser transferido para longe da vítima, terá vedado o direito à visita íntima e encontrará barreiras para progressão de regime. Essas medidas são necessárias, mas despertam uma questão que pulsa nas entrelinhas: como equilibrar a dureza da punição com o compromisso de construir políticas públicas preventivas? Não há na lei uma resposta clara para este dilema, e talvez resida aí sua maior fragilidade.
Outro ponto de destaque é a prioridade processual para casos de violência contra a mulher, que promete reduzir a demora judicial. É um avanço aplaudido, mas que enfrenta a conhecida lentidão do Judiciário brasileiro. De que adianta priorizar processos sem investir na estrutura necessária para julgar com a celeridade que as vítimas exigem? Não bastam leis eficientes; é preciso garantir um sistema que funcione. Se não há recursos suficientes para aplicar a legislação, ela corre o risco de se tornar mais um marco simbólico, incapaz de transformar a realidade que pretende modificar.
Por fim, cabe uma provocação: a lei reconhece a especificidade do feminicídio, mas será suficiente isolá-lo como crime hediondo sem uma mudança social que combata suas raízes? O Código Penal é incapaz, por si só, de alterar a cultura de menosprezo à mulher. É preciso que caminhemos além do punitivismo e embarquemos na estrada da educação e da conscientização.
O verdadeiro avanço virá quando as leis forem acompanhadas de uma sociedade mais igualitária, em que a condição de ser mulher não seja vista como vulnerabilidade, mas como força.
Assim, celebramos o passo dado, mas com os olhos fixos no horizonte. Há muito a ser feito. Justiça não é apenas punir quem erra, mas também garantir que outras não precisem sofrer para que o erro seja percebido. O feminicídio é um espelho cruel de quem somos enquanto sociedade. A pergunta que ecoa é: até quando o Estado continuará oferecendo respostas simbólicas e punitivistas, sem investir nas políticas públicas estruturais necessárias para prevenir a violência e transformar de fato a realidade das mulheres no Brasil?