Os desembargadores da 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo determinaram que o Instituto Hospital Oswaldo Cruz de Hemoterapia pague uma indenização de R$ 2 mil a um homem que não pôde doar sangue em razão de regra do Ministério da Saúde já derrubada pelo Supremo Tribunal Federal.
O autor da ação, Natan, compareceu ao hemocentro do instituto no dia 11 de junho de 2020, mas não pôde doar sangue por ter respondido questionário afirmando que havia mantido relações sexuais com outro homem nos 12 meses que antecederiam o procedimento.
No entanto, no mês anterior, no dia 8 de maio, o Supremo Tribunal Federal havia declarado a inconstitucionalidade da regra que prevê abstinência sexual de 12 meses para “homens que se relacionam com homens” doarem sangue. A ata de tal julgamento – marco da validade da decisão, conforme a jurisprudência da Corte – foi publicada no dia 22 do mesmo mês.
Na época, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) enviou ofício aos hemocentros do País no dia 14 de maio, seis dias após o entendimento do STF, orientando todos os laboratórios a não cumprirem a decisão até a ‘conclusão total’ do processo.
Ao avaliar o caso de Natan, o relator da ação, desembargador Alcides Leopoldo, ponderou: “No caso, o requerido (Natan) foi impedido de doar sangue com fundamento em norma discriminadora, reconhecidamente inconstitucional, violadora de princípios e garantias fundamentais como o princípio da dignidade da pessoa humana, autonomia privada e igualdade substancial, o que configura dano moral indenizável, extrapolando o mero aborrecimento”.
No julgamento que ocorreu no último dia 29, os desembargadores Marcia Dalla Déa Barone e Enio Zuliani acompanharam integralmente o voto do relator, no sentido de atender parcialmente recurso impetrado por Natan contra decisão de primeira instância que havia indeferido o pedido de indenização, sem analisar o mérito da ação.
Em sua defesa, Instituto Hospital Oswaldo Cruz alegou que somente foi comunicado da decisão do STF em 12 de junho, um dia após recusar a doação do caso em questão, sustentando que ‘imediatamente passou a acatar a nova orientação’. A entidade alegou que ‘não agiu de forma discriminatória e dolosa, limitando-se a atuar em conformidade com os atos administrativos que regulavam o tema, cujas modificações somente foram efetuadas e comunicadas posteriormente’.
Ao avaliar o caso, o relator, Alcides Leopoldo, frisou que a recusa da doação se deu 20 dias após a publicação da ata de julgamento pelo STF e considerou ‘inverossímil’ que, no meio tempo, a decisão não tenha chegado ao conhecimento do instituto – “não apenas por guardar íntima pertinência com sua atividade empresarial, mas também pelo fato de ter sido amplamente divulgada à época pelos diversos meios de comunicação, inclusive pela Imprensa internacional, desde o dia 08/05/2020, quando foi concluído o julgamento, e profusamente comemorada por toda a comunidade LGBTQIA+”.
Segundo o desembargador, desde a publicação da ata de julgamento em 22 de maio, o instituto já estada ‘vinculado’ à decisão do STF. “Ainda que não tenha agido com dolo manifesto, incorreu em ato ilícito, não a isentando da obrigação de indenizar o desconhecimento da eficácia da decisão do STF, preferindo aguardar a comunicação do Ministério da Saúde”.
Ao fixar o valor de R$ 2 mil como indenização, Leopoldo ponderou que a conduta do hemocentro se deu ‘supondo estar amparado em normas administrativas do Ministério da Saúde e da Anvisa válidas, e que, incoerentemente, até pouco tempo antes dos fatos, eram vigentes’.
O magistrado ponderou que o autor da ação não relatou que o ‘impedimento de doar sangue tenha sido manifestado de forma vexatória, expondo-o indevidamente às demais pessoas presentes no local’. De acordo com Natan, a ‘enfermeira responsável lamentou o ocorrido, mas informou que não havia alternativa para o momento’.
Com palavras, a defesa de Natan
“Ninguém pode ser discriminado por causa de sua orientação sexual. Nunca, nem na hora de doar sangue. A vitória de Natan é também uma conquista da assistência jurídica gratuita. Entidades como o Caju, de alunos, ex-alunos advogados e professores da FGV, podem, sim, fazer a diferença. Este caso criou jurisprudência: decisões do Supremo valem por si mesmas, têm efeitos imediatos e não cabe à Anvisa, ao Ministério da Saúde ou ao Oswaldo Cruz escolher se vão cumpri-las ou não.”
Matias Falcone, advogado e fundador do Centro de Assistência Jurídica Saracura – Caju